Primeiro
ATO: Primeiro quadro.
A
primeira cena da peça teatral inicia-se às quatro horas e trinta minutos. Ainda
não havia amanhecido na cidade de Salvador e o casal Zé do Burro e sua esposa
Rosa, chegam a frente à igreja de Santa Bárbara. Saíram às cinco da manhã do
interior baiano e caminharam sete léguas até que chegam à igreja um pouco antes
desse horário. Zé do Burro era um homem muito simples, proprietário rural de um
pequeno pedaço de terra no interior do nordeste, donde tirava o sustento de sua
família e possuía um burro, o Nicolau por quem tinha muito apego e que
acreditava que tinha “alma de gente”. Uma fatalidade mudou o rumo de sua vida:
um dia o burro foi atingido por uma queda de uma árvore, em virtude de um raio,
deixando-o gravemente ferido. Zé do Burro desesperado ante essa situação, fez
uma promessa à Santa Bárbara: caso seu burro se recuperasse, ele dividiria suas
terras entre os necessitados e carregaria uma cruz tão pesada como a de Jesus
até a igreja da Santa. Como em sua cidade não havia a respectiva igreja, fez a
promessa em um terreiro de candomblé, onde ela é conhecida pelo nome de Iansã.
Seu burro se recupera e assim, ele e sua esposa, partem em via crucis para
cumprir o prometido e oferecer ao padre responsável pela referida igreja, à sua
cruz.
Zé
— (Olhando a igreja.) É essa. Só pode ser essa. (Rosa pára também,
junto aos degraus, cansada, enfastiada e deixando já entrever uma revolta que
se avoluma.)
Rosa
— E agora? Está fechada.
Zé
— É cedo ainda. Vamos esperar que abra.
Rosa
— Esperar? Aqui?
Zé
— Não tem outro jeito.
Rosa
— (Olha-o com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato.)
Estou com cada bolha d’água no pé que dá medo.
Zé
— Eu também. (Contorce-se de dor. Despe uma das mangas do paletó.) Acho
que os meus ombros estão em carne viva.
Rosa
— Bem feito. Você não quis botar almofadinhas, como eu disse.
Zé
— (Convicto) Não era direito. Quando eu fiz a promessa, não falei em
almofadinha.
Rosa
— Então: se você não falou, podia ter botado; a Santa não ia dizer nada.
Zé
— Não era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus não
usou almofadinhas.
Rosa
— Não usou porque não deixaram.
Zé
— Não, esse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente embrulha o
santo, perde o crédito. De outra vez o santo olha, consulta lá os seus
assentamentos e diz: — Ah, você é o Zé do Burro, aquele que já me passou a
perna! E agora vem me fazer nova promessa. Pois vá fazer promessa pro diabo que
o carregue, seu caloteiro duma figa! E tem mais: santo é como gringo, passou
calote num, todos os outros ficam sabendo.
Rosa
— Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois dessa? Já não chega?
Zé
— Sei não ... a gente nunca sabe se vai precisar. Por isso, é bom ter sempre as
contas em dia. (Ele sobe um ou dois degraus. Examina a fachada da igreja à
procura de uma inscrição.)
Rosa
— Que é que você está procurando?
Zé
— Qualquer coisa escrita, pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa
Bárbara.
Rosa
— E você já viu igreja com letreiro na porta, homem?
Zé
— É que pode não ser essa...
Rosa
— Claro que é essa. Não lembra o que o vigário disse? Uma igreja pequena, numa
praça, perto duma ladeira...
Zé
— (Corre os olhos em volta.) Se a gente pudesse perguntar a alguém...
Rosa
— Essa hora está todo mundo dormindo. (Olha-o quase com raiva.) Todo o
mundo ... menos eu, que tive a infelicidade de me casar com um pagador de
promessas. (Levanta-se e procura convencê-lo.) Escute, Zé... já que a
igreja está fechada, a gente podia ir procurar um lugar para dormir. Você já
pensou que beleza agora uma cama? ...
Zé
— E a cruz?
Rosa
— Você deixava a cruz aí e amanha, de dia ...
Zé
— Podem roubar ...
Rosa
— Quem é que vai roubar uma cruz, homem de Deus? Pra que serve uma cruz?
Zé
— Tem tanta maldade no mundo. Era correr um risco muito grande, depois de ter
quase cumprido a promessa. E você já pensou: se me roubassem a cruz, eu ia ter
que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui. Sete léguas.
Rosa
— Pra quê? Você explicava à santa que tinha sido roubado, ela não ia fazer
questão.
Responda às questões abaixo:
a. Zé do
Burro vive em um mundo mágico, em que se acredita no que não é real. Para ele
havia limites entre o céu e a terra? Justifique sua resposta.
b. Ser
submisso é gostar de ser dominado, ser escravo. Em sua opinião, Rosa era
submissa a Zé do Burro ou o acompanhava em sua peregrinação por amor?
c. Há
mais submissão das mulheres no meio rural ou no meio urbano? Por quê?
d. A
religiosidade de Zé do Burro demonstra amor ou temor a Deus? Justifique.
e. O que
você pensa a respeito do fato de algumas religiões incentivar o sacrifício dos
fiéis na terra para alcançar o céu? Explique.
f. O
texto teatral escrito apresenta alguns tipos de letras diferentes, em geral em
itálico, que são chamados rubricas.
Observe:
Rosa — (Olha-o
com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato.) Estou com cada
bolha d’água no pé que dá medo. Discuta com seus colegas e responda: qual é a
função das rubricas nesse tipo de texto?