Aluna: Eduarda Moura Pinheiro
Professora: Elisângela Oliveira Silva de Araújo
Escola: E. M. E. F. Francisca Rita de Cássia Lima Pinto; Cruzeiro do Sul – AC
Não quero esquecer aquele cantinho só meu, cheio de vida, de sons e de cores que há muito tempo só existe em minha memória: a casinha de tábua onde morávamos; o fogão a lenha num dos cantos da cozinha, que tisnava tudo, manchando de preto narizes, paredes e o teto de palha; a casa de farinha – lugar de suplício para mim, que odiava lavar mandioca –, e a densa floresta ao redor, interrompida por pequenos roçados, de onde papai e mamãe tiravam, com muita dificuldade, o sustento da família...
Ali, meus velhos só viviam para o trabalho. E aos sábados, que nem burrinhos de carga, lotados de cestas, iam ao antigo mercado vender o que colhiam na lavoura e comprar o rancho, como denominavam a feira semanal.
Eu, menina levada, e minhas três irmãs, apesar dos trabalhos que éramos obrigadas a fazer (“pastorar” arroz, raspar e lavar mandioca, arrancar ervas daninhas dos roçados), nos divertíamos também. Brincávamos de casinha, de esconde-esconde e, às vezes, quando papai nos mandava pastorar o plantio do arroz, para enxotar passarinhos, nós aproveitávamos para jogar pedrinha – diversão arriscada, que papai nem sonhava acontecer! Por isso quando víamos vir em direção do roçado, começava a gritaria desenfreada: “Xô, passarinho, xô!”.
Mas eu gostava mesmo era de ir ao roçado sozinha, porque ali procurava um galho de alguma árvore caída e passava a tarde me balançando e cantando o mais alto que eu podia. Eu adorava cantar e achava que estava abafando! Gostava de ouvir o eco da minha voz mata adentro...
Porém, as lembranças que mais me emocionam são da natureza e da simplicidade da vida naquele recanto: os riachos de água límpida e fria, onde passávamos parte do tempo nos banhando, mesmo a contragosto de nossos pais; as plantinhas de cores variadas, cheias de besouros coloridos; as espigas de milho, que para mim eram bonecas de cabelos lindos – cor-de-rosa, amarelinho, esverdeado...; os passarinhos diversos: rolinhas, curiós,
beija-flores, sanhaços e outro montão de que nem me lembro mais os nomes. Nunca me esqueci do canto da passarada ao amanhecer: era trinado sem fim, uma festa diária na mata. Durante o dia, o céu limpinho me parecia ter sido varrido por alguém, assim como eu varria o terreiro. Santa inocência!
E as noites de verão? Como me encantavam as sombras das árvores que a lua cheia projetava no terreiro, onde ficávamos até mais tarde observando as estrelas, contando-as, nomeando-as, e elas me pareciam mais numerosas que hoje, penduradas no céu como enfeites de árvore de Natal... De repente, aquele estado de contemplação era interrompido por um tiro no meio da mata. Era uma armadilha de papai anunciando que havia paca ou tatu para o almoço de domingo. E lá se ia meu velho herói, portando um terçado, uma lanterna a pilha, e acompanhado de um vira-lata corajoso em busca de caça já agonizante. Tempos bons aqueles!
Mas, hoje, só saudades... Daquele lugar mágico, que minha memória resgata com tanta vivacidade, só vejo breves resquícios, prestes a se desfazerem também. Aquela exuberância em verde e vida de toda a natureza ao redor foi apagada em nome do progresso. Pouco a pouco, o verdor da floresta foi sendo engolido pela motosserra, as águas, lambidas pelo fogo, as matas tombaram e cederam lugar a ruas, casas, igrejas, escolas, pastos... E eu, impotente, assisti a tudo, dando a cada dia um novo adeus lacrimejante a algum elemento que se ia embora, sem chance de regresso.
Mataram-me a mata e parte da minha história, destruíram meus castelos de sonho, e nada pude fazer para impedir. Aquele mundo encantado, que existiu concretamente, e ficava aqui em Cruzeiro do Sul, interior do Acre, agora é abstrato, só existe em minha memória.
(Texto baseado na entrevista feita com a sra. Elisângela Oliveira Silva de Araújo, 31 anos.)
Vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa 2010
Gotas de chuva... leve barulho da saudade!
Aluna: Saionara Aparecida Sant’Ana dos Santos
Professor: Edmar Garcia Nicole
Escola: E. E. E. F. M. Irineu Morello; Cidade: Governador Lindenberg – ES
Mais uma vez sinto o calor da lembrança, e o calafrio da saudade... Meu ser anuncia a hora de relembrar o maravilhoso tempo de criança, as ideias inesquecíveis, brincadeiras memoráveis e contagiantes daquele tempo...
Bons tempos aqueles: morávamos num lugar pequeno, cheio de matas e animais, casas rústicas, construídas pelos moradores com paredes de pau a pique – um trançado de ripas como estrutura para fixar o barro batido nos buracos. Hoje as casas são de alvenaria, as matas desapareceram e com elas os animais. O lugar é chamado de Córrego Baixo Moacir, município de Governador Lindenberg, interior do Espírito Santo.
Naquela época, com movimentos rápidos das mãos, víamos a agulha franzir o babado: era nossa mãe costurando nossos vestidos para irmos à missa aos domingos. Nossos olhares de crianças puras brilhavam feito pequenas esmeraldas, curiosos em saber qual seria o modelo mais belo. Agora o carinho das mãos habilidosas de nossa mãe foi substituído pela frieza das máquinas. Logo após a missa, na estrada de terra – esta pelo menos ainda existe! –, voltávamos a pé e lá de longe já sentíamos o cheiro do frango caipira, coradinho com a tinta retirada dos fartos pés de urucum que vovô socava no pilão. O frango era acompanhado pela polenta, uma herança da cultura italiana. O aroma que vinha da janela da casa da vovó era convidativo e fazia com que apressássemos o passo.
Eu estimava os dias de chuva, quando bastava ouvir um leve toque anunciando que a festa ia começar. Era só abrir a porta e meus amigos transformavam-se em “campainhas”, cujo barulho de felicidade era demonstrado aos berros, ao sentir o prazer de cada gota caindo sobre seus corpos, que refrescava a alma. A chuva caía vagarosamente e num passe de mágica transformava-se numa cachoeira em gotas. Mas nós não estávamos satisfeitos e bastava a distração dos familiares para que corrêssemos estrada afora e de poça em poça descobríssemos mais um mistério. Esses eram os dias de que mais gostávamos: os mágicos dias de chuva, que hoje já não são tão frequentes.
Já nos dia em que o sol recobria o telhado de palha de coqueiro, feito por nossas pequenas mãos, nossa diversão era construir nossos próprios brinquedos. Tudo era utilizado: pequenos frutos e pedaços de gravetos. Carretéis e madeira eram usados para fazer os carrinhos, também brincávamos de bonecas costuradas com palha e sabugo de milho colhidos
no quintal, o que hoje já não acontece, pois as crianças de agora pensam somente nos brinquedos falantes, jogos eletrônicos e em tudo o que não desperta a curiosidade, a inteligência, e faz com que não usem suas mãos para inventar e construir, preferindo apertar somente um botão.
Nos fins de semana, reunia os amigos para colhermos frutos e degustá-los. Uma delícia! Hoje os frutos são poucos e quando não contaminados pelo excesso de agrotóxicos nas lavouras. Nossas roupas branquinhas passadas a ferro em brasa – até então não existia energia elétrica –, os vestidos engomados com uma mistura de água e polvilho, muito usada na época, estavam completamente sujos, o que nos rendiam alguns sermões de nossas
mães. E, assim, após o banho, eu ia à casa da vovó ouvir o vovô contar histórias relembrando seu passado, suas memórias, que me faziam adormecer em sonhos, saboreando as primícias de uma infância bem vivida.
(Texto baseado na entrevista feita com a Sra. Olga Bertti Sant’Ana, 68 anos.)
Vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa 2010
Luz, fé, sabor e ação
Aluna: Priscilla Nicola Silva
Professora: Joelma Freitas da Fonseca
Escola: Colégio Municipal Arceburguense; Cidade: Arceburgo – MG
Impossível esquecer-me da linda cidade onde passei toda a minha vida. Quando pequena, recordo ser também a cidade uma criança que começava a crescer junto comigo. Luz! Os postes de madeira foram colocados nas poucas ruas da minha cidadezinha. Eu ficava maravilhada com aquelas “estrelas” tão próximas, possíveis de serem tocadas. Os adultos diziam: “É obra do governo, o progresso chegou”. Acostumados com a novidade, voltamos à nossa rotina.
A Igreja Matriz: pedacinho do céu mesmo, sabe por quê? Foi construída pela comunidade, cada um cuidando da sua maneira; com o que podia e com seus respectivos talentos.
No ano de 1920 ficou totalmente pronta. Nas paredes e no teto, passagens bíblicas que retratam a vida do nosso padroeiro, São João Batista. A imagem que mais me impressionava era a da cabeça de São João numa bandeja. Mamãe me explicou o motivo que levara o nosso santinho à morte. Eu sentia medo, pena, e ficava profundamente triste com tanta maldade. Terminada a missa, bastava sair da igreja para os meus sentimentos começarem a mudar.
Ali o cheiro da comida mineira dominical alvoroçava minha vontade de comer. Era perceptível o cheiro da macarronada, do frango caipira e do doce caseiro, que era meu maior desejo. Como eu gostava de doces! E por me lembrar de gostosuras me vêm à memória as festas de São João. Noites claras, enluaradas, enfeitadas e temperadas com brincadeiras, leilões, guloseimas, bingos e barraquinhas. Eu não tinha dinheiro para comprar nada do que via; no entanto, papai trabalhava mais do que nunca nessa época para, ao menos, comprar para mim e meus irmãos um lindo e saboroso cartucho recheado com os docinhos que faziam um rio correr na boca.
Outra diversão daquele tempo era participar das brincadeiras do circo. Constantemente, nossa cidade recebia a visita de parques e do circo Lexo-Lexo. Confesso que tinha enorme preferência por este último! Ali, no terreno onde montavam aquela tenda, meus sonhos se erguiam também. Nos teatros, eu era sempre uma personagem. Faltava um autor, outro ator, eu e meu irmão Antônio tínhamos o que fazer; corríamos em volta daquele circo o dia todo e nos divertíamos muito, pois quando entrávamos em cena o circo já estava lotado. E era possível ouvir alguém dizendo: “Olha, os filhos do Filipim”. Eu me sentia bastante orgulhosa, quase me esquecia o que tinha para representar, mas aí era que todos gargalhavam...
Hoje, apesar da saudade daqueles tempos, vejo com grande satisfação as mudanças desta cidade. Lugar tranquilo, terra de amigos que não se encontram em canto nenhum. É uma cidade pequena, se comparada a outras, vizinhas, mas posso garantir que é aquela que se destaca por sua beleza, pelos recursos e empregos e por sua gente tão capaz e competente, gente feliz.
(Texto baseado na entrevista feita com a sra. Terezinha Peres da Silva Nicola, 65 anos.)
Vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa 2010
Memórias de um ribeirinho
Aluna: Daniele Oliveira Cunha
Professora: Analita Dias Rebouças Oliveira
Escola: E. E. Reunidas Castro Alves; Cidade: Jiquiriçá – BA
Já faz tanto tempo, mas as lembranças dos meus tempos de infância vividos na zona rural não me saem da memória.
Ao primeiro cantar do galo, meu pai já estava de pé e pronto para começar mais um longo e fatigado dia de trabalho. O vento frio da manhã acariciava nossos rostos, eu e meus irmãos pulávamos da cama e corríamos para a lojinha, atraídos pelo delicioso cheiro de café que só a mamãe sabia preparar. A mesa estava repleta dos produtos da terra, frutos do suor de um incansável ribeirinho que trabalhava de sol a sol para garantir o sustento da família.
E, nos “maravilhosos” dias de sol, quando ainda brincávamos sem nos preocupar com a intensidade dos raios solares, íamos para o rio das Velhas, que passava perto lá de casa. O cheiro de mato verdinho adentrava em nossas narinas. O céu azul límpido irradiava felicidade.
Ah, como era gostoso! Saíamos correndo e tchibum! Caíamos na água, nadávamos como peixinhos, flutuávamos sobre as águas que ainda não haviam sofrido os efeitos da poluição e chegávamos a adormecer, recebendo aquela brisa suave misturada ao calor do sol.
Então, já cansados e famintos, íamos fazer a festa nos pés de jacas, subíamos nos mais altos galhos daquela frondosa árvore e saíamos de lá fartos. Como não tínhamos compromisso com horário, retornávamos ao rio para pescar.
Quando me lembro disso, lágrimas vêm aos olhos, pois aquele majestoso rio, palco das nossas peraltices de criança, transformou-se em um pequeno riacho ofegante, que insiste em ressurgir após cada temporada de chuva. Mas nada à altura do que era antes. Naquela época, ele corria solto, tanto é que uma das nossas brincadeiras prediletas era disputar quem conseguia chegar à outra margem.
Nisso passávamos quase o dia inteiro.
Naquelas águas claras e límpidas perdíamos tempo a observar a briga dos peixes que disputavam os farelos que atirávamos na água. A ansiedade tomava conta de todos nós. O coração acelerava de tanta felicidade e quando um ingênuo peixinho caía em nossas mãos era uma folia! Não víamos o tempo passar. Só percebíamos quando o céu começava a escurecer, em um belo pôr do sol, levando consigo aquele lindo dia de diversão!
Mas o tempo passou, e a infância marcante desse ribeirinho agora fica registrada apenas em minha memória. Um rio de águas límpidas, intermináveis dias de sol estão agora guardados em meu coração. Sinto saudades de uma época em que meus netos não terão a oportunidade de viver, de um tempo mágico, cheio de alegrias e encantos.
Minha maravilhosa infância!
(Texto baseado na entrevista feita com o Sr. Joaquim Santos Cunha, 53 anos.)
Vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa 2010
Minha vida de menina
Aluno: Cícero Augusto Carvalho Abreu
Professora: Vera Lúcia de Araújo Azevedo
Escola: E. E. F. Pedro Neudo Brito; Cidade: Graça – CE
Durante minha vida em Graça sempre fui uma garota agitada. Lembro-me de que eu e minha melhor amiga gostávamos de passear pelo mercado municipal recém-construído, mas muito diferente do de hoje: o teto era feito de palha, sustentado por um tronco enorme. Passeávamos por lá por não haver outra opção e também para paquerarmos os meninos.
Nascemos quase juntos: eu e o mercado. Somos uma coisa só, mas não estamos nos livros, televisão ou qualquer documento. Estamos na memória que marcou minha adolescência. Às vezes sinto saudades daqueles tempos, quando tudo era mais tranquilo, não havia quase motos ou carros nas ruas.
Ao chegar em casa, ajudava minha mãe a fazer chapéu. A palha utilizada cortava meus dedos, mas era a única forma de ajudar na renda familiar, garantindo dinheiro para, quando chegassem os festejos, comprar tecido para fazer os vestidos.
Estudava à tarde com a professora Iracy, mestra muito severa. Minha mochila era um saco de arroz, em que levava um lápis, a cartilha do ABC e uma tabuada. Meu pai me colocou na escola, e meus irmãos também, para aprendermos a ler uma carta e fazer outra. Eu era craque na leitura e não gostava da tabuada, mas estudava muito para não apanhar de palmatória. Nunca apanhei da professora, pois ficava bem quietinha. Durante o recreio, ela
mandava-nos capinar o mato que crescia ao redor da escola, tarefa que julgava enfadonha, pois minhas mãos às vezes inchavam.
Quando chegava da escola já era quase hora do jantar. Comíamos feijão com farofa de toucinho. O gosto não era bom, mas de tanto comer já havia me acostumado. Raramente comíamos carne ou biscoito, e só tomávamos refrigerante quando caíamos doentes.
Nas festas não havia bebidas alcoólicas, só o arico-rico – suco industrializado em pó colocado em garrafas –, que tinha que ser dividido com os amigos, proporcionando momentos de alegria e confusão.
Apesar das secas, minha família nunca passou fome, pois meu pai criava capotes e cabras;por esse motivo não nos faltava leite. Raramente chovia, mas quando acontecia era o maior alvoroço! Todos corriam em busca de baldes para armazenar água e eu ainda brincava com as outras crianças na chuva. A água que caía do céu era fresquinha, contrastando com a terra quente, e quando se misturavam produziam uma fumaça que causava um clima de mistério. A forte chuva formava um pequeno lameiro, que, misturado à terra, parecia um rio de chocolate. A magia da água tocando o meu rosto era muito forte. Nessas horas o trabalho era esquecido.
Naquele tempo, a chuva era a maior alegria e a rua transformava-se em um mundo fantástico. Além das brincadeiras no lamaçal que escorria pela rua, modelávamos panelinhas de barro para brincar de comidinha, fazíamos bonecos de sabugo de milho ou casca de melancia, construíamos casinhas e redes de palha para pastorar o roçado...
Quando não chovia era uma tristeza de dar dó, não havia mais a magia e sobrava tempo para brincar pela manhã. Então, eu e a minha turma nos reuníamos nas casinhas de palha. Lá construíamos brinquedos, conversávamos, fazíamos comidinhas de frutas e inventávamos
histórias cheias de mistérios e paixões.
Nossa vida se enchia de alegria, que vinha de muitos momentos: das brincadeiras, da escola, da família e de quando chovia. O fim da história? Não sei, porque ainda vivo. Enquanto viver, minhas memórias nunca irão acabar.
(Texto baseado na entrevista feita com a sra. Maria Nonata de Abreu, 58 anos.)